26 Fevereiro 2020
Um teste do impacto de um determinado pensador ou líder é a capacidade de moldar a linguagem. Karl Marx, por exemplo, nos apresentou “a burguesia” como um bicho-papão abrangente do capitalismo moderno. Ronald Reagan nos apresentou o “império do mal” como um slogan de oposição ao Estado soviético que o pensamento de Marx ajudou a criar.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada em Crux, 23-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Seguindo esse padrão, o Papa Francisco participou de uma verdadeira corrida ao longo dos últimos sete anos, aprimorando e aumentando o vocabulário católico em vários pontos-chave. Talvez em nenhum lugar isso fique mais claro do que na capacidade do papa de deslocar o debate sobre como a autoridade é exercida no catolicismo de uma discussão sobre a “colegialidade” – o termo preferido nos 50 anos após o Concílio Vaticano II (1962-65) – para uma discussão sobre a “sinodalidade”, que é seu assunto preferido.
O problema da “sinodalidade” como foco de discussão, no entanto, é que ela parece significar coisas muito diferentes para pessoas diferentes.
Em um extremo do espectro, os críticos a denunciam como um tipo de código para colocar pontos fixos da doutrina e da prática em votação, portanto, pendendo mais para o zeitgeist do que para a verdade. No outro extremo, alguns entusiastas parecem vê-la como uma competição para ver quem consegue gritar “amém” mais alto sempre que o papa fala.
A maioria das pessoas normais, naturalmente, não se reconhecem em nenhum desses extremos e geralmente ficam um pouco confusas sobre o que exatamente Francisco está falando quando elogia as virtudes da sinodalidade.
Como se sabe, obtivemos alguma clareza sobre isso recentemente, mesmo que principalmente na forma de uma “via negativa” papal, no sentido de que a sinodalidade não é mais do que é. A contribuição veio durante um encontro de três horas no mês passado com bispos da região 11 dos Estados Unidos, que inclui Califórnia, Havaí e Utah.
Eu ouvi sobre isso no sábado, em Anaheim, Califórnia, onde estou dando várias palestras no fim de semana no Congresso de Educação Religiosa de Los Angeles, o maior encontro anual de católicos da América do Norte. Isso ocorreu durante uma conversa que eu gravei com o bispo auxiliar Robert Barron para o seu Instituto Word on Fire, onde eu também atuo como membro.
Barron foi questionado sobre a experiência ad limina, que foi a sua primeira, e ele começou falando sobre como foi significativo para ele celebrar a missa no primeiro dia da viagem abaixo do altar principal da Basílica de São Pedro, onde a tradição afirma que se encontram os restos mortais de São Pedro, e ser conduzido logo depois para um encontro com o Papa Francisco, o sucessor de Pedro hoje.
Barron disse que o Papa Francisco recebeu os bispos da região 11 por mais de três horas em uma sala do Palácio Apostólico do Vaticano. Enquanto os bispos da região 11 que sabem espanhol falaram com o papa em sua língua, suas respostas foram exclusivamente em italiano e foram traduzidas por um intérprete.
(Barron riu dizendo que, embora o papa parecesse que poderia passar mais três horas conversando sem problemas, o tradutor estava acabado no fim.)
Entre os vários pontos levantados pelos bispos com o papa, segundo Barron, estava a questão de como ele entende exatamente o significado da “sinodalidade”. A preocupação se inspirava, disse ele, na sua experiência de tentar obter uma noção clara dela durante o Sínodo dos Bispos sobre os jovens, em 2018, além de assistir aos desenvolvimentos contemporâneos na Alemanha e um “caminho sinodal” em relação ao qual os críticos se preocupam que irá terminar em uma espécie de “vale-tudo” doutrinal.
Segundo Barron, Francisco disse aos bispos dos EUA que a “sinodalidade” não significa um parlamento ou uma votação democrática. O verdadeiro protagonista de um Sínodo dos Bispos, disse o papa, não é nenhum dos bispos ou dos outros participantes, mas sim o Espírito Santo.
Como Barron apontou mais tarde em uma postagem que ele escreveu sobre a visita, isso está totalmente alinhado com os entendimentos católicos tradicionais sobre o poder na Igreja. Em uma democracia secular, o poder flui a partir do consenso dos governados. Na Igreja, em vez disso, o poder flui a partir da vontade soberana de Deus, conforme discernida e mediada pelas autoridades magisteriais. Em outras palavras, a “sinodalidade” não tem a ver com aquilo que os bispos ou outras lideranças desejam. Ela tem a ver com toda a Igreja, começando pelos bispos, tentando descobrir o que Deus quer ao enfrentar um conjunto específico de desafios.
Essas são as coisas que o papa já disse antes, é claro, inclusive em seus comentários sobre basicamente todos os Sínodos dos Bispos realizados em seu papado, mas, mesmo assim, é instrutivo que ele as repita com tanta ênfase.
Aqui está como Barron resumiu:
“O que quer que o Papa Francisco entenda por ‘sinodidade’, ele claramente não entende um processo de democratização ou de colocar a doutrina em votação”, escreveu Barron. “Parece-me que se ele se refere a uma conversa estruturada entre todos os atores eclesiais relevantes – bispos, padres e leigos – a fim de ouvir a voz do Espírito.”
Isso está funcionando?
O júri provavelmente ainda está se decidindo, embora Barron tenha relatado uma indicação interessante: com Francisco, disse ele, ficaram para trás os dias em que uma visita ad limina a um dicastério vaticano significava um cardeal entrando em uma sala, falando aos (e às vezes repreendendo os) bispos por 45 minutos em italiano e depois saindo. Os chefes de dicastério hoje em dia, disse ele, claramente receberam o memorando de que devem ouvir tanto quanto falar.
Também é interessante notar que Barron disse que não detectou nenhum antagonismo em relação aos EUA ou aos norte-americanos que as narrativas populares sobre Francisco às vezes sugerem. De fato, disse ele, o papa chegou a agradecer aos bispos estadunidenses, dizendo que sabia que eles tinham sido forçados a carregar grande parte do peso dos escândalos de abuso e desejando que eles soubessem que ele é grato por isso.
Nada disso, é claro, resolve completamente a confusão sobre a “sinodalidade”, e nada disso provavelmente recalibrará o pensamento daqueles que já chegaram a opiniões rápidas e duras sobre Francisco. Mesmo assim, é algo útil, que sugere que, independentemente do molde no qual alguém tente encaixar esse papa insubordinado, ele permanecerá sempre esquivo a essas tentativas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Papa aos bispos dos EUA: “Sinodalidade não significa democracia” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU